sábado, 5 de junho de 2010

Sala d'um AP

Para ler ouvindo Por causa de você
___________
Durante

Acordo com o barulho do telefone tocando. Levanto um pouco o corpo e me espanto: babei enquanto dormia. O barulho parece ser ensurdecedor. Procuro o telefone e atendo, era engano. Jogo o telefone longe, tentando assim amenizar o ódio de ser acordado dessa forma estúpida. Olho em volta e tento entender o que aconteceu, nunca minha casa esteve em estado tão deplorável. Não sou o rei da organização, mas o furacão que por aqui passou não deixou nada no lugar.
Fico de pé e vejo o que posso fazer para deixar a casa um mínimo aceitável, quando vejo os discos que tão cuidadosamente escolhi entre a coleção de meus pais. Escolhi para ela. Me deu uma saudade. Escolho um e ponho para tocar. Quem canta é a Dolores que ela tanto gosta. Vou ouvindo e imaginando quanta coisa boa poderíamos ter feito juntos.
Vejo o caderno jogado num canto, admiro sua capa e um pouco do conteúdo que está dentro dele guardado, sem ter tido nunca a oportunidade de ser lido por outra pessoa que não fosse eu. Quem deveria não leu e nem se importou sequer com sua presença. A música continua tocando e eu, meio que guiado por ela, vou à janela e lanço o caderno ao vento, folha a folha, como se isso fosse me resgatar de alguma prisão.
Ao voltar minha atenção para a sala, vejo no chão, o presente que ela me deu ontem rindo da minha cara, e a música, só para me ridicularizar, engancha no disco arranhado. O impulso me leva a abrir aquela caixa, descobrir que dentro dela tem uma camisa, pegar uma tesoura e, num rompante de ódio, descontar naquele presente toda a mágoa de algo que não aconteceu.
Batiam na porta e eu não ouvia, a música volta a tocar novamente, como a me avisar que eu mantivesse a calma. Volto a si e escuto a porta. Me bate uma esperança: é ela, só pode ser! Voltou para dizer que sempre entendeu e não sabe bem porque não me falou. Voltou para dizer que não está mais casada e quer criar o filho aqui comigo, e tem certeza que eu serei um bom pai, e eu vou ficar com os dois, criá-lo como se fosse meu, só por ser filho dela, e ficar com ela para sempre...
Atendo. Era o porteiro. Uma conta. Rio de mim mesmo: como pude ser tão estúpido? O disco parou de tocar como que para ouvir minha risada. Rio, rio e continuo a rir, até lembrar que não tenho motivos reais para isso, e choro, choro, continuo a chorar, como nunca fiz antes.
Permaneço chorando, por não ver motivos de parar.

Escrito em algum dia de agosto de 2001, para o módulo Interpretação III, ministrado pelo professor Antônio do Valle, durante a formação da 3ª turma do (extinto) Colégio de Direção Teatral do Instituto Dragão do Mar

Nenhum comentário: