Bem antes
Passamos a nos encontrar constantemente e um dia saímos depois do trabalho. Feliz ela me contou que iria embora, que sua proposta de emprego fora daqui havia dado certo. Vi minha vida acabar naquele momento. Seus olhos me diziam, me pediam, para que eu dissesse algo, que a amava, que minha vida não teria mais sentido, me imploravam que lhe contasse que desde o nosso reencontro minhas poesias deixaram de existir no papel e passaram a ser vividas, que não sentia mais necessidade de escrever nada, pois o "porque" da minha vida estava nela. Porém, não lhe disse nada, deixei-a ir sem ouvir de minha boca uma palavra daquilo tudo.
A partir de então vivi por viver, como antes, só que dessa vez mais literal. Comecei a fumar e a beber, eu que nunca sequer havia ficado bêbado. Passei a me trancar mais, dentro de minha casa, e dentro de meu peito. E voltei a criar, a escrever, a poetizar. Preenchi um caderno, uma página para cada dia que passava, cada dia uma poesia, todas para ela.
Há dois dias o telefone tocou, era ela. Veio passar um curto tempo aqui e queria me ver. Não escrevo desde então.
Ontem não fui trabalhar, coisa que nunca havia feito, quis me preparar para nosso encontro. Disse-lhe que poderia chegar a qualquer hora, mas sei que virá só à noite. Mandei arrumar a casa e tirei dos fundos do baú a antiga vitrola de meus pais, e alguns discos. Ela gosta das cantoras brasileiras mais antigas: Dalva, Núbia Lafayette, Sylvia Telles, e adora Dolores Duran.
Deixei tudo pronto: o caderno em cima da mesinha da sala, eu lhe entregaria e passaríamos a noite inteira ouvindo suas músicas preferidas e vivendo tudo que não havíamos vivido até hoje. Não iríamos compensar o tempo perdido, iríamos fazer o nosso tempo.
Eu só não esperava que ela chegasse tão cedo.
Escrito em algum dia de agosto de 2001, para o módulo Interpretação III, ministrado pelo professor Antônio do Valle, durante a formação da 3ª turma do (extinto) Colégio de Direção Teatral do Instituto Dragão do Mar
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